Primeira Saudade

sábado, julho 30, 2005

O primeiro dia de escola primária deve ser dos momentos mais marcantes na nossa vida, de certa forma é a primeira vez que passamos a ter responsabilidades, um objectivo definido, um horário. É altura de medos, receios e alegria intensa. No meu caso, acho, foi um pouco de tudo mas não me recordo de estar com uma grande excitação em relação a este dia. Lembro-me do meu irmão me estar a baralhar com a decisão importantíssima quanto ao tipo de lápis a levar, se um normalíssimo lápis de madeira com riscas amarelas e pretas ou se um porta-minas verde, grosso e com cromados brilhantes, este momento foi o que mais me marcou na minha preparação para novo estudante.
Mas o dia chegou e lá fui eu com a minha mãe até à minha nova escola, e lá estavam outros meninos e meninas à espera deste início de vida nova, e eram tantos, tantos que eu não conhecia. A dimensão do universo passou de uma rua, um bairro, algumas casas, os vizinhos, para uma multidão de crianças com os olhos postos em mim e nos que chegavam. Nesta altura ainda reinava um sossego relativo potenciado talvez pelo medo das novas sensações, e apenas os mais rebeldes e espevitados andavam já com as suas traquinices de descoberta e afirmação, mas a calma é o que recordo.
Quando entrámos para a sala com os nossos pais foi-nos dito para escolhermos uma mesa e partilhá-la com um colega que seria depois o nosso parceiro todo o ano. Os pais ficaram de pé, ora a assistir ora a aconselhar as escolhas numa tentativa normal de manipulação do que será melhor para os filhos. Eu era um menino muito tímido e calado, e por isso sorrateiramente lá fui sozinho para uma mesa e sentei-me sozinho no lugar do lado direito a aguardar que fosse escolhido por alguém, com sorte alguém que fosse simpático e não destabilizasse a minha calmaria da época. Ora nestas idades a calmaria não é apreciada e então as mesas foram sendo preenchidas, os pares de meninos e meninas foram-se formando e eu continuava sozinho, e começava a ficar um pouco triste por não ser escolhido.
De repente chega uma senhora, que já vinha muito atrasada, com uma menina loira linda, de chapéu com uma fitinha branca. Trazia daqueles vestidos cor-de-rosa com pequeninas flores e mais fitinhas brancas. Nos pés uns sapatos pretos redondos com fivela cobriam as meias brancas. Deve ter sido a minha 1ª paixoneta instantânea. Senti logo que ela seria a minha parceira o ano inteiro, não consegui mais desviar o olhar dela, como se a estivesse a controlar, e ela sempre a sorrir. Quase sem olhar para o resto da sala olha para mim e arranca logo na minha direcção com o ar mais decidido do mundo, senta-se ao meu lado e diz:
-Olá eu sou a Eduarda, ufa está cá um calor, venho do Entroncamento, os meus pais estão separados então tive de vir para aqui viver com a minha mãe que está ali, aquela loira baixinha do vestido azul, moro naquela rua estreita a seguir à ponte, a minha casa é a que tem uma oliveira em frente muito grande, a minha mãe diz que foi o meu avô que a plantou, já consigo subir ao ramo mais alto dela, costumo ir lá com a Ritinha, mas como não conheci o meu avô não lhe posso perguntar se ele plantou mais, gosto mais de viver aqui porque a minha rua é de terra e tem poucos carros mas tenho ainda poucos amigos, queres ser meu amigo?
Ora, num menino tímido em grau elevado, que praticamente só conhecia os meninos da minha rua, pouco habituado a novas amizades, seria de esperar que o entusiasmo tomasse conta de mim por tão energética proposta, mas não, fiquei aterrorizado porque esta menina que ao longe me tinha criado uma alegria tão grande, ali ao meu lado estava a assustar-me porque pura e simplesmente não se calava, até àquela data eu não tinha conhecido nada assim. A Eduarda falava o dia todo sem parar e eu olhava aterrorizado o dia todo para os coleguinhas das mesas em redor numa tentativa infrutífera de pedido de socorro, alternando com pequenos sorrisos para a Eduarda como se houvesse a necessidade de alimentar o monólogo que me perturbava todos os dias. No recreio eu fugia da Eduarda e ela procurava sempre por mim, encontrava-me e falava, falava, e sempre com aqueles vestidinhos inocentes e chapéus para disfarçar o terror falante e inesgotável.
Ao fim de dois anos a Eduarda regressou ao Entroncamento, talvez os pais se tenham apaixonado outra vez.
O Fernando passou a ser o meu colega de carteira e era um chato porque estava sempre calado e a dormir, e eu fiquei para sempre com saudades da Eduarda…

O detalhe

terça-feira, julho 26, 2005

Tenho de confessar que sou muito observador, de tudo o que é observável por quem gosta de observar, e acredito que tudo é observável, seja para compreender uma forma, uma acção ou simplesmente para apreciar a beleza. A indiferença leva sempre a uma resistência na evolução pessoal e do grupo, sendo claramente o caminho mais fácil no instante mas deixando um pântano para quem vier a seguir, e a seguir podemos vir nós.
Como conseguem alguns parar o cérebro tanto tempo sem sentir nada, ter toda uma máquina complexa, maravilhosa, calibrada para uma vida farta de sensações boas e más mas no entanto vivas, ainda por cima uma máquina com prazo de validade anunciado algures no futuro de forma incerta.
Parar por um segundo que seja é sentir o inanimado, a apatia injustificada, a morte. O cérebro descansa a dormir, aí sim repousa, repousa deliciando-se com os sonhos influenciados pelas descobertas do dia.
Apesar da nossa validade anunciada logo à nascença, o normal é a falta de atenção aos pormenores que nos rodeiam sempre, principalmente dos nossos e dos mais próximos. Admiramos o genérico vazio, distante e pouco influente das nossas vidas e não cintilamos com os grãos de terra que temos nas mãos e com os quais nos podemos perfumar de sensações únicas.
Quando será que as pessoas descobrem que a beleza está, existe, é!
Tudo é importante, nem que seja na razão inversa da não importância.
O que é acontece, logo temos de estar, ver, sentir, ouvir, tocar, cheirar. Não podemos perder a curiosidade da nossa meninice, a insaciável curiosidade de uma criança que acredita no futuro.
São felizes os que não deixam escapar o detalhe, todos os detalhes têm a dimensão colossal da importância dada pelo observador atento, são potenciais fontes de inesgotável prazer.

Sentir o silêncio

sábado, julho 23, 2005

«Valery Varbanov: "My World Is Silence"»
O som que se sente
quando se ouve um sentimento,
é um silêncio vibrante e incandescente.
Não chega escutar apenas, o silêncio
quando queremos sentir todas as melodias,
é preciso sentir a força, do silêncio.
Uma dança, um toque, um beijo,
com silêncio...
é um sentimento que se ouve,
no silêncio...
Como eu gosto do silêncio!



A mentira

quinta-feira, julho 21, 2005


A mentira respira luxúria, não é necessariamente má essa necessidade de respirar um ar diferente do suposto obrigatório e em quantidades diferentes das medidas padrão. A mentira é a verdade desfasada pelo olhar do mentiroso que automaticamente nos transforma a todos de mentirosos pelo simples facto da mentira ser uma verdade para o mentiroso.

Sendo a mentira portadora da mesma relevância da verdade, precisa do mesmo índice de ponderação, mantêm a mesma relação entre beneficiado e prejudicado, porque será que a tendência é criticar a mentira quando todos nós mentimos compulsivamente, uns mais que outros, nem que seja a nós próprios. Talvez a mentira seja uma defesa nossa de potenciar o prazer da verdade, da verdade que é o fim do mistério de nada, ou talvez de uma mentira bem contada!

Desde o inicio que o Homem sobrevive através da mentira, se pensar-mos bem, por um pouco, sem ela não havia a necessidade da incessante busca da verdade e por outro a mentira alimenta temporariamente a ignorância de quem não quer procurar a verdade porque dá trabalho. Este é o lado bom da mentira, a justificação do conceito de verdade, o lado mau, bem esse reside em cada um de nós. Eu por exemplo detesto a mentira como forma de entretenimento, de justificação da antimatéria sem saber sentir um punhado de terra com cheiro de vida.

Enquanto houver verdades por aparecer mentiras surgirão em todas as formas de inclinação, por exemplo se sussurrar-mos uma pequena frase a uma pessoa e lhe pedir-mos para sussurrar a outra e assim sucessivamente lá para a quinta pessoa já a frase está adulterada com a imaginação e mentira dos intervenientes, imagine-se agora milhões de anos com biliões pessoas a transmitir conhecimento aos próximos mentirosos.

Quando tudo for quantificável, mensurável, passível de ter verdade aceite por todos será que a mentira se justifica, será que estaremos preparados para suportar a total ausência de mentira, bem acho que acabo com uma resposta que é uma mentira, ou seja, nessa altura já devemos ter destruído tudo com verdades, excepto as mentiras.
Curiosa, a mentira, que mente como gente e às vezes nem sabe que a verdade existe certamente, a verdade existe sempre, isso devia estar presente em todos nós mas até aí mentimos, a nós próprios.

Estrada cinzenta

segunda-feira, julho 18, 2005


Que sensação esta de estar todos os dias no meio do cinzento, sem dar conta que faço parte dele, que sou um pouco dele, um pouquinho tão insignificante que me afasta desta relação inconscientemente, apesar de agarrado a ela, sempre.
No que pensam estes grãos de pó fumados de chumbo, barulhentos, apontados para o próximo, qual será o objectivo deles para hoje visto partilharem este sofrimento cinzento sem darem conta do comum que dividem.
Todos os dias me questiono se vale a pena entrar na estrada cinzenta, tal como os outros, como todos os outros que vão fazer algo, ou simplesmente vão além. É uma tortura ter de estar ali, sem poder fugir, ouvir o histerismo da repetição, a falta de educação, a interjeição arrogante.
No cizentismo de uma qualquer estrada estão todos os defeitos das criaturas e poucas qualidades, o obrigatório é desinteressante, pouco imaginativo, mas será que tem de ser sempre assim. Será que a formiga vai sempre triste no seu regular, rápido, repetitivo e incansável andar em carreiros.
Estou a trabalhar para que todos os meus caminhos sejam sempre um prazer de caminhada, tudo tem sempre algo de belo, temos é de o procurar.
vê se fazes o mesmo!
Temple 1

sábado, julho 16, 2005














Descoberto em 1867 por Ernst Wilhelm Leberecht Tempel e protegido por Jupiter e Marte, só agora conheceu a curiosidade do homem.
Pena tenha sido na forma de espigão explosivo, certamente temos um novo inimigo.

Mas muita informação e beleza para nos encher!
Será que a bola de lixo gelado sorriu quando viu a nossa mensagem, lá bem longe?
Folha vermelha
Uma folha, uma forma, um aroma!
Prefiro o aroma da côr que sacia o meu amor.
A curva que encaminha o meu toque, sem parar, sem respirar.
Não quero chorar, de pensar que terei de parar, ou até abrandar
de cheirar o teu aroma, de folha vermelha.
A sombra

Não me larga, nem quero deixar de tentar dar-lhe a mão, se conseguisse…

Quando vejo luz já sei onde está ela, sempre do lado oposto, a perturbar não sei o quê, nem sei se a mim, ou a outra, ou até a outra coisa!

Só sei que é minha, que me persegue, que se molda a mim e sem mim não tem forma. Tudo o que tem forma tem sombra, mas esta sombra tem a minha forma de sobra, o que será que quer de mim?

Será que apenas procura a minha forma, ou mais de mim, é que assim não consegue, se apenas me persegue, a forma. E porque será que a minha forma é disforme conforme o olhar da sombra, que é minha?.

Eu até podia deixar-me apanhar e dar-lhe o que ela queria, mas ela queria o quê? Quando paro, paro-a também, e sei que não é ninguém que ali está, é ela! A imitar-me por cima de tudo, ofuscando superfícies com a minha forma de uma maneira tão fluida que duvido que afinal seja a minha representação ao sentimento de algo que me vê do outro lado da luz.

Afasta-se tanto de mim quando a luz vai longe, como pode fugir do seu foco de vida e usar-me como monte que esconde o sol e observa calmamente uma estranha dança de formas que se espalham no seu horizonte.

Porque desaparece no escuro? Porque não aparece quando lhe sinto a falta, de não sei o quê?

Às vezes sinto a falta dela, mesmo com total ausência de odor sinto-a, o seu cheiro vê-se pelo brilho que me rodeia e é gasto por ela, consome o que eu desperdiço, de brilho, e eu não me importo, gosto até.

Só queria saber porquê, não sei o quê.