O apito que se afasta

terça-feira, setembro 27, 2005

O eco dos sapatos a bater na calçada da rua fizeram desviar as cortinas e subir as persianas para o olhar escuro das velhinhas daquelas bandas ser saciado, ele corria com toda a rapidez, desesperado de aparência a sugerir um assalto recente nas imediações ou talvez uma perseguição ou na pior das hipóteses uma fuga, a noite era escura de uma lua que está para nascer mas apenas se via o céu preto das nuvens.
Ninguém ali resistiu na esperança de ser um assalto, é sempre assim, o inesperado é sempre ruim e vem sempre de fora.
Se vinha a correr de noite desesperado, despenteado e barbudo então não podia ser coisa boa nem boa gente.
Logo após a passagem relâmpago deste homem começa-se a ouvir cliques suaves de fechos de janelas e persianas, calmamente lá começaram a pôr as cabeças de fora como se fossem roedores a sair da toca com o cuidado de sondar os predadores nas imediações. Começam os comentários pendulares de insatisfação crónica de uma vida morta e seca de emoções de quem tenta ter a glória imediata do momento neste bairro:
-Aquilo era um drogado de certeza!
-Um assalto ao café lá de cima com certeza.
-Estes malandros! Que ninguém lhes põe a mão!
Quem não parou para assistir a esta agonia foi o homem que corria puxado por uma atracção invisível ou talvez empurrado para lá da sua ociosidade de forma abrupta. Ele continuava a correr cidade abaixo e sem demonstrar cansaço aparente lá ia como que meramente ofuscado pela noite já que era impossível passar encoberto no seu estado.
Passou pela zona de prostituição mais imunda da cidade onde de forma ligeira levantou suspeitas para polícias e ladrões, o medo nos olhos das prostitutas com receio de mais um homicídio que bem podia ser o delas. Chega a um parque de estacionamento onde alguém estava a sair do carro, um encontrão entre carros atira o homem para o chão, imediatamente retoma a corrida ainda no chão como se nunca tivesse parado, o mesmo não se pode dizer do condutor que em pânico volta a entrar no carro e foge assustado em grande velocidade.
Na rua mais comercial da cidade as pessoas começam a ver ao longe o movimento do homem desesperado e delicadamente colocam as mãos nos bolsos para se certificarem da carteira e o que de mais importante trazem consigo, aguardam impacientemente a passagem do sujeito por eles olhando nos cantos dos olhos para verificar a sua área circundante passando a desconfiar de todo o estranho individuo.
Após muitas vielas, muitos encontrões, gritos de dor, insultos banais, medos de insegurança, ameaças, suor frio, lágrimas, e muito cansaço o homem chega ao cais e pára firme de olhar fixo num navio que já vai longe, o som grave do apito já demora a chegar e chega fraco. Alguém pergunta no escuro:
-Para quê tanta correria homem?
Sem desviar o olhar do navio responde:
-Vai ali a Joana! Sem olhar para trás…
Quando o navio já era um ponto entre muitos outros no horizonte escuro o homem vira as costas ao mar e retoma a viagem no sentido inverso de forma lenta, corcunda e de olhos postos no chão, ao ritmo dos passos a caminho de uma crucificação certa.